terça-feira, 10 de maio de 2016

Crianças Índigo



Análise de Dora Incontri*
Nota 1: Esta análise originalmente foi publicada como artigo na seção "Educação para Todos", da Revista Universo Espírita, edição n° 40, com o título "Crianças Índigo e Espiritismo, alguma coisa a ver?".
Nota 2: O livro "Crianças Índigo" não é espírita, e sim uma obra espiritualista, entretanto, pela sua larga circulação no movimento espírita, o Portal Orientação Espírita entende a necessidade de publicar esta análise, com o intuito de esclarecer e despertar consciências.
Uma das novidades dessa primeira década do terceiro milênio é o anúncio de uma geração de crianças chamada "índigo". Há ainda uma outra classificação, a das crianças "cristal". A onda veio dos Estados Unidos a partir de um livro de Lee Carroll e Jan Tober The Indigo Children, the new kids have arrived, publicado no Brasil, pela Editora Butterfly, sob o título de Crianças Índigo.
Entre tantas, é uma temática incluída nessa corrente híbrida de pensamentos chamada New Age (Nova Era), que mistura orientalismos, misticismos vários, espiritualismo ocidental, psicologismos vagos, e, às vezes, Espiritismo, na sua forma norte-americana de spiritualism. O que caracteriza o pensamento New Age é justamente o anúncio de novos tempos para a humanidade, de maior espiritualidade, de aumento de consciência, de iluminação coletiva.
Como não existe uma filosofia consistente e unificadora para esse movimento, nele se abrigam todos os tipos de reflexões e propostas, desde algumas razoavelmente sensatas e certas músicas bonitas e relaxantes, até idéias místicas, mesmo supersticiosas. O que falta é justamente um eixo de racionalidade e o que sobra, para atrapalhar, é o mercado em torno do tema.
Temos hoje uma indústria de espiritualidade light, que vende em pílulas de livros de auto-ajuda, um conforto inconsistente, uma religiosidade descomprometida, porque muito superficial e feita para consumo rápido e descartável. Essa tendência se tornou de tal forma predominante - porque dá dinheiro - que ela contagia inclusive as grandes religiões e afeta em cheio o mercado editorial espírita.
O leitor-consumidor quer leituiras rápidas, fáceis, que possam dar receitas prontas e flexíveis para dar alívio às suas múltiplas angústias. Nada que comprometa muito, nada que o faça raciocinar em demasia, nada que o obrigue a tomar atitudes éticas mais firmes. A espiritualidade também se tornou produto de mercado.
A questão das crianças índigo se insere nesse contexto. Segundo os autores que trabalham o tema, há crianças especiais nascendo no mundo para preparar a Nova Era, suas auras azuis justificam o nome de crianças índigo. São questionadoras, contestadoras, corajosas para construir um novo mundo. Mas há também as crianças cristais, essas mais evoluídas ainda, que são introspectivas, sensíveis, iluministas.
Segundo os autores, esses seres precisam de atenção especial, de uma nova educação e de espaço para se desenvolverem livrementes.
A questão, tanto com o movimento da Nova Era quanto com esse tema específico das crianças índigo, é que há algumas verdades intuídas em meio a uma grande confusão de conceitos e incoerências perigosas.
Já no século 19 o Espiritismo anunciava novos tempos para a humanidade e dizia que a mudança se daria, sobretudo, pela encarnação de Espíritos mais conscientes, que já viriam aptos a construir e a vivenciar um novo mundo.
Há também um postulado adotado por Allan Kardec que, conforme se dá o progresso dos mundos, o período de infância vai ficando mais curto e os Espíritos reencarnam cada vez mais lúcidos e rapidamente amadurecem dentro dos propósitos que os trouxeram à nova existência.
Entretanto, uma das características do pensamento espírita é o despojamento de toda e qualquer linguagem mística e mítica, uma certa racionalização da espiritualidade, dentro de um entendimento lógico do mundo e da vida. Se uma nova geração está surgindo - e certamente está, pois basta conviver com as crianças atuais, para observar a sua vivacidade, a sua capacidade de desenvolvimento e a sua sensibilidade - é um fato natural, faz parte da lei do progresso coletivo e é inclusive parcialmente explicável pela maior quantidade de estímulos que as crianças recebem hoje desde cedo.
O perigo de classificarmos essas crianças é considerá-las seres privilegiados - pois o pior é que apenas algumas crianças são tidas como índigo ou cristal -, criando castas, de que os pais se orgulham e sobre as quais projetam seus desejos de grandeza. A identificação de possíveis crianças especiais é altamente problemática e mesmo prejudicial, porque suscita discriminações, classificações desvantajosas para outras, que não sejam assim consideradas, e para elas próprias, proporcionando um estímulo à vaidade.
Na obra de Lee Carroll e Jan Tober, há problemas ainda maiores. É que a identificação de tais crianças baseia-se em critérios muito subjetivos e mesmo errôneos. Vemos crianças consideradas índigo estapeando o rosto da mãe, sendo prepotentes, humilhando e agredindo outras pessoas, inclusive seus pais. Ora, segundo qualquer avaliação sensata, tais tendências não revelam um espírito superior. Pode ser até um ser desenvolvido intelectualmente, mas o orgulho e a arrogância mostram um déficit moral, que os pais têm a responsabilidade de ajudar a corrigir, com amor e diálogo, é claro, sem repressões e punições.
Outros critérios apontados - como os citados por Tereza Guerra, no livro dela: Crianças Índigo - Uma geração de ponte com outras dimensões, publicado pela Editora Madras - carecem completamente de qualquer cientificidade e de qualquer possibilidade de comprovação. São pseudocientíficos. Vejamos três desses critérios. Diz a autora, Tereza: "Esses indivíduos são, simplesmente, novas expressões com características que vocês não possuem:
1. Uma vibração mais elevada;
2. Uma organização que invalida certos atributos provenientes dos astros que, habitualmente, afetam os humanos;
3. Um dispositivo biológico específico, que lhes permite manejar melhor as impurezas fabricadas pelos próprios humanos do planeta".
Já conseguiram algum meio de medir a elevação da vibração de cada um? E que organização e dispositivo biológico são esses? Alguma mutação genética, comprovada? Estamos diante de uma geração de mutantes, superiores a nós? Como se vê, são afirmativas gratuitas, inconsistentes e problemáticas.
Essa discussão mostra muito bem por que insistimos em falar em uma Pedagogia Espírita, termo criado por J. Herculano Pires, e não em uma Pedagogia Espiritualisdta ou Nova Pedagogia ou Pedagogia do Amor - como algumas pessoas sugerem no sentido de descaracterizá-la de um suposto aspecto sectário. Quem compreende bem o Espiritismo sabe que ele tem um caráter universalista e não se fecha em fanatismo e sectarismo. E o que faz parte principalmente de sua proposta é o método de abordagem da realidade, de maneira científica, racional, sem abdicar da visão espiritual. Ou seja, Kardec nos indica critérios de tocar o real, de maneira a termos mais segurança em nosso modo de conhecer.
Assim, a pedagogia espírita é uma pedagogia que assume a reencarnação, a espiritualidade como dimensão real e necessária do ser humano, mas não abandona o eixo da racionalidade científica, desenvolvido na história do Ocidente, desde a civilização grega. Não podemos nos lançar a um misticismo medieval, deixando de lado as âncoras da pesquisa e da razão.
Portanto, dentro dessa abordagem, podemos afirmar que a pedagogia espírita trabalha com um critério democrático, racional, de considerar todas as crianças iguais e, ao mesmo tempo, singulares, rejeitando classificações restritivas ou discriminatórias.
Todas as crianças são iguais, essencialmente divinas, espíritos em evolução, com infinitas potencialidades a serem desenvolvidas. Todas precisam de amor, diálogo, educação libertadora, que permita seu pleno desabrochar. Todas devem ser respeitadas e ajudadas a cumprir seu destino evolutivo.
Todas as crianças são únicas, cada uma tem seu histórico reencarnatório, cada uma traz talentos específicos a serem trabalhados na presente existência, cada uma está num degrau diferente de evolução espiritual - que é difícil avaliar, pois não há métodos de medir evolução espiritual a não ser observar o exemplo de um ser humano ao longo de sua existência e, ainda assim, muitos se enganam nessa avaliação, tomando falsos profetas por missionários.
Cabe-nos observar atentamente cada indivíduo, conhecer de perto suas tendências e jamais abdicar da função de educar, o que não significa modelar de fora, mas ajudar o ser a se autoconstruir.
*Dora Incontri é pedagoga, professora universitária, escritora, diretora da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e colabora no movimento espírita de Sâo Paulo.
Fonte:http://www.orientacaoespirita.org/critica_17.htm

AS CRIANÇAS ÍNDIGO E MOVIMENTO ESPÍRITA



Autora DORA INCONTRI

            Como explicar a adesão de lideranças e instituições espíritas a uma tese tão absurda? 

            A entrada livre do movimento índigo dentro do movimento espírita brasileiro revela apenas o que os espíritas conscientes já sabem (e estes infelizmente são em muito pequeno número): nosso movimento anda longe da trilha proposta por Kardec. Entenda-se que não tomamos aqui essa trilha como um conjunto de dogmas fixos, como um sistema fechado de pensamento. O espiritismo – como queria Kardec – deve estar inserido no mundo, na cultura de seu tempo, deve dialogar com outras correntes de pensamento, deve continuar seu caminho de ciência e de pesquisa.

Mas para isto é preciso um método. A principal contribuição de Kardec foi a criação de um método de abordagem da realidade, que inclui a observação científica, a reflexão filosófica e a revelação espiritual. Esses três caminhos convergem na busca da verdade e um elemento controla o outro. Não se pode aceitar cegamente o que vem pela revelação mediúnica – é preciso passá-la pelo crivo da razão e pela análise do método científico. Aliás, somos nós, encarnados, que fazemos a ciência, e não os Espíritos, que vêm apenas nos intuir, nos ajudar, sobretudo no plano moral. Uma ciência que supostamente nos viesse pronta do Além já deveria ser motivo de desconfiança e é própria de Espíritos pseudo-sábios. 

No caso de Lee Carrol, Jan Tober e o Espírito de Kryon (que a tradução brasileira mudou para médium Kryon, quando se trata de um Espírito que se afirma extraterrestre e o Espírito mais próximo de Deus!), defrontamo-nos com uma grande mistificação, com fins comerciais, sem nenhuma racionalidade, sem nenhum critério científico... e os espíritas embarcaram gostosamente na idéia. Por quê?

Alguns certamente o fizeram de boa-fé, outros com claros interesses financeiros, porque se trata de um tema vendável, na linha de auto-ajuda descompromissada, aquela que agrada ao leitor, por trazer receitinhas prontas de como tratar um filho índigo – e muitos podem se iludir no orgulho de ter um filho de aura azul, predestinado a mudar o mundo, um mutante genético!

Os que aceitaram a idéia de boa-fé não são menos desculpáveis, principalmente em se tratando de lideranças, formadoras de opinião, que publicam livros, fazem palestras, porque deveriam ter a responsabilidade ética e intelectual de falar apenas sobre aquilo que pesquisaram em profundidade e manifestarem uma opinião abalizada sobre o assunto. Aos que fazem publicações com fins comerciais, não temos o que dizer. Kardec advertia que contra interesses não há fatos que prevaleçam.

É preciso esclarecer bem o que criticamos na questão de fins comerciais, pois temos também uma editora e podemos ser mal interpretados. É óbvio que o setor editorial espírita precisa ser profissional, movimentar dinheiro, contratar pessoas, trabalhar na base do profissionalismo e não do amadorismo. Isto também vale para uma escola, uma universidade, um empreendimento qualquer que leve o nome de espírita. Ou seja, temos pleno direito ético de vender um livro espírita (porque senão não podemos publicar outros), de cobrar um curso ou um congresso, para cobrir os custos e, inclusive, para reinvestirmos na própria divulgação do espiritismo. O que criticamos, que é próprio da mentalidade capitalista, é quando passamos o lucro na frente do ideal. Ou seja, quando traímos os princípios da doutrina espírita, publicamos qualquer coisa, para ganhar dinheiro, fazemos qualquer negócio, para obter dividendos e buscamos com isso enriquecimento pessoal.

É isso o que o capitalismo preconiza: lucro acima de tudo e princípios éticos totalmente descartáveis e secundários. A qualidade de um produto, as responsabilidades social, ideológica, moral ficam subordinadas ao desejo de venda fácil. As editoras espíritas que trabalham seriamente, com cultura e livros de conteúdo, sabem o quanto é preciso se sacrificar para manter bem alto o ideal!
A falta do espírito crítico

O outro aspecto comprometedor que afasta o movimento espírita do rumo de Kardec é a ausência de criticidade, debates e exame livre das questões. Quando surgem às vezes alguns críticos, cometem o deslize que discutir pessoas, ao invés de discutir idéias. Mas a grande maioria, acostumada à cultura do “brasileiro cordial”, acrescida pelo estereótipo de “espírita caridoso”, não está habituada a nenhum exercício de crítica construtiva. Considera-se que crítica é falta de caridade. 

Ora, Kardec, nos 12 volumes da Revista Espírita, estabelecia um debate eloqüente, ardido e, muitas vezes, usando aquele fino espírito francês de ironia, para colocar-se ante adversários e para esclarecer questões polêmicas. Não que transformasse as páginas da Revista em arena de combate, mas não deixava de exercitar o saudável espírito da análise crítica, inclusive como instrumento de construção do conhecimento espírita.

Todos os grandes pensadores agiram assim. Basta lembrar Sócrates, com sua fina ironia, debatendo com os sofistas; basta rememorar Descartes, com seu método racionalista, desmontando a teologia jesuítica. Toda a história do pensamento humano constitui-se no debate de idéias.

Quando a discussão é implicitamente proibida, cria-se o autoritarismo disfarçado, a idolatria por líderes, que passam a pontificar sem nenhum questionamento, dominando as consciências, e não há progresso e nem liberdade de pensamento. 

É isso o que se vê no meio espírita atualmente. Qualquer pessoa pode publicar, falar, pontificar o que for, e ninguém rebate uma vírgula, ninguém faz uma objeção. Por isso, multiplicam-se os absurdos e estamos imersos numa avalanche de frivolidades.

Enquanto não aprendermos a debater sem melindres, a discutir idéias sem paixões pessoais, a criticar construtivamente e a exercitar o livre-exame (que já Lutero propunha há 500 anos), não teremos um movimento espírita esclarecido e progressista, que não engula mistificações tão grosseiras como essa das crianças índigo. Obviamente que só é possível criticar construtivamente a partir de um conhecimento aprofundado das questões. Para isso, é preciso estudar Kardec e procurar sempre ampliar o horizonte cultural.

[Jornal da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita - Junho 2007.]

Extraído de https://sites.google.com/site/aderj2/torre-de-vigia-doutrinaria/dora-incontri/o-movimento-espirita-e-as-criancas-indigo