Análise
de Dora Incontri*
Nota
1:
Esta análise originalmente foi publicada como artigo na seção "Educação
para Todos", da Revista Universo Espírita, edição n° 40, com o título "Crianças
Índigo e Espiritismo, alguma coisa a ver?".
Nota
2: O
livro "Crianças Índigo" não é espírita, e sim uma obra
espiritualista, entretanto, pela sua larga circulação no movimento espírita, o
Portal Orientação Espírita entende a necessidade de publicar esta análise, com
o intuito de esclarecer e despertar consciências.
Uma
das novidades dessa primeira década do terceiro milênio é o anúncio de uma
geração de crianças chamada "índigo". Há ainda uma outra
classificação, a das crianças "cristal". A onda veio dos Estados
Unidos a partir de um livro de Lee Carroll e Jan Tober The Indigo
Children, the new kids have arrived, publicado no Brasil, pela Editora
Butterfly, sob o título de Crianças Índigo.
Entre
tantas, é uma temática incluída nessa corrente híbrida de pensamentos
chamada New Age (Nova Era), que mistura orientalismos,
misticismos vários, espiritualismo ocidental, psicologismos vagos, e, às vezes,
Espiritismo, na sua forma norte-americana de spiritualism. O que
caracteriza o pensamento New Age é justamente o anúncio de
novos tempos para a humanidade, de maior espiritualidade, de aumento de
consciência, de iluminação coletiva.
Como
não existe uma filosofia consistente e unificadora para esse movimento, nele se
abrigam todos os tipos de reflexões e propostas, desde algumas razoavelmente
sensatas e certas músicas bonitas e relaxantes, até idéias místicas, mesmo
supersticiosas. O que falta é justamente um eixo de racionalidade e o que
sobra, para atrapalhar, é o mercado em torno do tema.
Temos
hoje uma indústria de espiritualidade light, que vende em pílulas
de livros de auto-ajuda, um conforto inconsistente, uma religiosidade
descomprometida, porque muito superficial e feita para consumo rápido e descartável.
Essa tendência se tornou de tal forma predominante - porque dá dinheiro - que
ela contagia inclusive as grandes religiões e afeta em cheio o mercado
editorial espírita.
O
leitor-consumidor quer leituiras rápidas, fáceis, que possam dar receitas
prontas e flexíveis para dar alívio às suas múltiplas angústias. Nada que
comprometa muito, nada que o faça raciocinar em demasia, nada que o obrigue a
tomar atitudes éticas mais firmes. A espiritualidade também se tornou produto
de mercado.
A
questão das crianças índigo se insere nesse contexto. Segundo os autores que
trabalham o tema, há crianças especiais nascendo no mundo para preparar a Nova
Era, suas auras azuis justificam o nome de crianças índigo. São questionadoras,
contestadoras, corajosas para construir um novo mundo. Mas há também as
crianças cristais, essas mais evoluídas ainda, que são introspectivas,
sensíveis, iluministas.
Segundo
os autores, esses seres precisam de atenção especial, de uma nova educação e de
espaço para se desenvolverem livrementes.
A
questão, tanto com o movimento da Nova Era quanto com esse tema específico das
crianças índigo, é que há algumas verdades intuídas em meio a uma grande
confusão de conceitos e incoerências perigosas.
Já
no século 19 o Espiritismo anunciava novos tempos para a humanidade e dizia que
a mudança se daria, sobretudo, pela encarnação de Espíritos mais conscientes,
que já viriam aptos a construir e a vivenciar um novo mundo.
Há
também um postulado adotado por Allan Kardec que, conforme se dá o progresso
dos mundos, o período de infância vai ficando mais curto e os Espíritos
reencarnam cada vez mais lúcidos e rapidamente amadurecem dentro dos propósitos
que os trouxeram à nova existência.
Entretanto,
uma das características do pensamento espírita é o despojamento de toda e
qualquer linguagem mística e mítica, uma certa racionalização da
espiritualidade, dentro de um entendimento lógico do mundo e da vida. Se uma
nova geração está surgindo - e certamente está, pois basta conviver com as
crianças atuais, para observar a sua vivacidade, a sua capacidade de
desenvolvimento e a sua sensibilidade - é um fato natural, faz parte da lei do
progresso coletivo e é inclusive parcialmente explicável pela maior quantidade
de estímulos que as crianças recebem hoje desde cedo.
O
perigo de classificarmos essas crianças é considerá-las seres privilegiados -
pois o pior é que apenas algumas crianças são tidas como índigo ou cristal -,
criando castas, de que os pais se orgulham e sobre as quais projetam seus
desejos de grandeza. A identificação de possíveis crianças especiais é
altamente problemática e mesmo prejudicial, porque suscita discriminações,
classificações desvantajosas para outras, que não sejam assim consideradas, e
para elas próprias, proporcionando um estímulo à vaidade.
Na
obra de Lee Carroll e Jan Tober, há problemas ainda maiores. É que a
identificação de tais crianças baseia-se em critérios muito subjetivos e mesmo
errôneos. Vemos crianças consideradas índigo estapeando o rosto da mãe, sendo
prepotentes, humilhando e agredindo outras pessoas, inclusive seus pais. Ora,
segundo qualquer avaliação sensata, tais tendências não revelam um espírito
superior. Pode ser até um ser desenvolvido intelectualmente, mas o orgulho e a
arrogância mostram um déficit moral, que os pais têm a responsabilidade de
ajudar a corrigir, com amor e diálogo, é claro, sem repressões e punições.
Outros
critérios apontados - como os citados por Tereza Guerra, no livro dela: Crianças
Índigo - Uma geração de ponte com outras dimensões, publicado pela Editora
Madras - carecem completamente de qualquer cientificidade e de qualquer
possibilidade de comprovação. São pseudocientíficos. Vejamos três desses
critérios. Diz a autora, Tereza: "Esses indivíduos são, simplesmente,
novas expressões com características que vocês não possuem:
1. Uma vibração mais elevada;
2. Uma organização que invalida certos atributos provenientes dos astros que, habitualmente, afetam os humanos;
3. Um dispositivo biológico específico, que lhes permite manejar melhor as impurezas fabricadas pelos próprios humanos do planeta".
1. Uma vibração mais elevada;
2. Uma organização que invalida certos atributos provenientes dos astros que, habitualmente, afetam os humanos;
3. Um dispositivo biológico específico, que lhes permite manejar melhor as impurezas fabricadas pelos próprios humanos do planeta".
Já
conseguiram algum meio de medir a elevação da vibração de cada um? E que
organização e dispositivo biológico são esses? Alguma mutação genética,
comprovada? Estamos diante de uma geração de mutantes, superiores a nós? Como
se vê, são afirmativas gratuitas, inconsistentes e problemáticas.
Essa
discussão mostra muito bem por que insistimos em falar em uma Pedagogia
Espírita, termo criado por J. Herculano Pires, e não em uma Pedagogia
Espiritualisdta ou Nova Pedagogia ou Pedagogia do Amor - como algumas pessoas
sugerem no sentido de descaracterizá-la de um suposto aspecto sectário. Quem
compreende bem o Espiritismo sabe que ele tem um caráter universalista e não se
fecha em fanatismo e sectarismo. E o que faz parte principalmente de sua
proposta é o método de abordagem da realidade, de maneira científica, racional,
sem abdicar da visão espiritual. Ou seja, Kardec nos indica critérios de tocar
o real, de maneira a termos mais segurança em nosso modo de conhecer.
Assim,
a pedagogia espírita é uma pedagogia que assume a reencarnação, a
espiritualidade como dimensão real e necessária do ser humano, mas não abandona
o eixo da racionalidade científica, desenvolvido na história do Ocidente, desde
a civilização grega. Não podemos nos lançar a um misticismo medieval, deixando
de lado as âncoras da pesquisa e da razão.
Portanto,
dentro dessa abordagem, podemos afirmar que a pedagogia espírita trabalha com
um critério democrático, racional, de considerar todas as crianças iguais e, ao
mesmo tempo, singulares, rejeitando classificações restritivas ou
discriminatórias.
Todas
as crianças são iguais, essencialmente divinas, espíritos em evolução, com
infinitas potencialidades a serem desenvolvidas. Todas precisam de amor, diálogo,
educação libertadora, que permita seu pleno desabrochar. Todas devem ser
respeitadas e ajudadas a cumprir seu destino evolutivo.
Todas
as crianças são únicas, cada uma tem seu histórico reencarnatório, cada uma
traz talentos específicos a serem trabalhados na presente existência, cada uma
está num degrau diferente de evolução espiritual - que é difícil avaliar, pois
não há métodos de medir evolução espiritual a não ser observar o exemplo de um
ser humano ao longo de sua existência e, ainda assim, muitos se enganam nessa
avaliação, tomando falsos profetas por missionários.
Cabe-nos
observar atentamente cada indivíduo, conhecer de perto suas tendências e jamais
abdicar da função de educar, o que não significa modelar de fora, mas ajudar o
ser a se autoconstruir.
*Dora
Incontri é pedagoga, professora universitária, escritora, diretora da
Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e colabora no movimento espírita de
Sâo Paulo.
Fonte:http://www.orientacaoespirita.org/critica_17.htm